sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Desatai o Futuro nº 01

Wells: a técnica que engendra sua própria crítica
Marina, estudante de ciências sociais da PUC-SP e militante da APP

Orson Wells tinha apenas 25 anos na data do lançamento de Cidadão Kane em 1941. Este período é marcado pelo prelúdio do que viriam a ser os anos áureos do capitalismo. O fordismo estava à toda nos Estados Unidos e a grande imprensa fervilhava como formadora de opiniões, com suas tiragens que alcançavam cifras exponenciais, promovendo e destruindo vidas, moldando o status quo de uma classe dominante, em uma sociedade cujo poder aquisitivo permitia consideravelmente o consumo das classes subalternas e a acumulação daqueles poucos que possuíam os recursos e a capacidade de administrá-lo. Isso implica em extrair o máximo de mais-valia do trabalho reificado, às custas da exploração cada vez mais latente da classe operária e de uma hierarquização na distribuição dos salários, em uma indústria balizada na produção em série, na esteira de montagem, onde cada movimento do trabalhador passa a ser ditado pelos ponteiros de um cronômetro.

A produção em série vai além dos muros da fábrica: os ponteiros do cronômetro marcam o passo da reprodução da vida mesma. Se bem o boom do pós-guerra, a relativa bonança deflagrada pelo avanço econômico e a consolidação dos Estados Unidos enquanto potência hegemônica mundial permite aos trabalhadores desse país a diminuição da jornada de trabalho, esse tempo livre é preenchido pela exaltação do consumo. Nesse contexto, as manifestações artísticas passam a ser cada vez mais absorvidas pela indústria cultural e se convertem em mercadorias. Isso ocorre com o cinema, que se converte – em grande medida, mas não em absoluto – em interlocutor da ideologia dominante. Trata-se, em última instância, do panis et circus do capitalismo. É utilizado como apaziguador das massas. Porém a sua contradição reside no fato de o cinema abrir brechas para o uso da crítica. No clássico de Wells, trata-se de uma crítica ao processo midiático mesmo. A técnica é empregada em sua própria crítica. Isso, por si só, justificaria a consagração de Cidadão Kane como um grande clássico do cinema. Mas ele vai além...

A abertura do filme, em preto e branco, é simbolizada por grades e portões. Aparece o castelo magistral: um castelo antigo, com um semblante que se remete à arquitetura gótica, com gárgulas que ostentam um universo onírico e fantasmagórico. Há um jogo de sombras e de luz que deixam no ar uma atmosfera de mistério. Eis o colapso do grande mito, que falece agarrado a uma bola de vidro, com suas últimas palavras: “Rosebud”. Aqui jaz o grande personagem mitificado: Charles Foster Kane. O mistério de suas últimas palavras torna-se uma missão para os jornalistas.

Seu obituário é manchete em todos os jornais. Jornalistas de toda a imprensa se debruçam sobre a retrospectiva de sua “vida exemplar”. É a imagem do grande burguês, daquele que com o seu árduo trabalho, alcançou o topo da pirâmide capitalista. Sua vida pública se torna notícia: um cidadão modelo do American Way Of Life. Suas palavras encontram ressonância em todos os recursos midiáticos: “I am an American. Always been an American”
[1].

Sua retrospectiva inicia em sua infância: a imagem de uma criança brincando na neve com o seu trenó, em um cenário semelhante ao da bola de vidro do momento de sua morte. Ele vivia uma infância simples e livre até o grande divisor de águas, que é a sua separação da família em decorrência de uma herança milionária. Ele é fadado a seguir o seu destino promissor, jamais seria o que ele era.

O inverno de 1929 é um inverno frio, marcado por uma crise econômica sem precedentes. Suas palavras se destoam com grande hipocrisia nas headlines dos jornais: “Se eu não tivesse me tornado tão rico, eu teria me tornado um grande homem”. E esse “não tão grande homem” se enobrece pelo trabalho. O que a mídia se “esquece” de falar é que não foi por seu próprio trabalho, mas pelo de outrém, que a duras penas construíram o seu império. Mas este império não lhes pertence; pertence a Charles Foster Kane. Ele também é “trabalhador”: trabalha dia e noite incessantemente administrando e contabilizando os seus lucros, manipulados pela intensificação da exploração do trabalho e por sua habilidade nos joguetes midiáticos. O ideário da modernidade é marcado pela inovação: o moderno que substitui o velho e o obsoleto, sendo este último encarnado no personagem do antigo Sr. Carter. Os artefatos ilustrativos dessa nova era se afiguram na transparência do vidro e no outdoor de uma vitrine, onde estão impressos os índices extraordinários de circulação, com um porta-retratos que realça a figura do protagonista no centro da cena.

Seu casamento com Emily se remete ao esfriamento de uma relação ao longo de anos. “ele não tinha amor para dar” – desabafa. Sua vida é marcada pela solidão do individualismo vigorante nos valores de sua classe social, que ressaltam o lucro e a acumulação em detrimento de uma vida livre e autônoma, e ao mesmo tempo roubam todo o brilho e autonomia de milhares de pessoas que trabalham para ele.

Em sua busca pela juventude, encontra uma moça que a despeito de sua fama, não o reconhece. Ele se apaixona. Nesse momento, paralelamente, sua carreira política inicia sobre os holofotes que destacam a imagem de um “amigo dos trabalhadores”, o único capaz de dar ouvidos aos protestos dos pobres. Protestos estes, que apareciam como resposta à quebra da bolsa de 1929, em que uma crise sem precedentes decai sobre as costas da classe trabalhadora, que é lançada abruptamente na fatalidade da fome e da miséria. Está aí a sua oportunidade de inaugurar sua carreira política. Com a propriedade dos principais veículos formadores de opinião, Kane busca se construir como o grande salvador da pátria. Porém ele fala do povo como se este o pertencesse. Mas o seu caso extraconjugal sela o término de seu casamento e de sua carreira política.

A moça pela qual ele se apaixonara é subitamente transformada em musa. Ele constrói a cantora. Ele é uma verdadeira “fábrica de talentos”. A “arte” passa por uma ressignificação: ela não está mais no artista, mas na produção, no espetáculo, na fabricação de talentos. A musa é identificada por quem tem a legitimidade para definir quem estará no centro dos holofotes.

A relação que ele estabelece com seus funcionários é fria, distante, utilitária – uma relação de poder. Ele tem que se defrontar constantemente com críticos e intrigas da oposição, como ocorre com Sr. Leland, que acaba perdendo o seu emprego por criticar a sua bela amada pela sua (evidente, ainda que não óbvia) falta de talento. Para a amada Alexandra, “tudo foi idéia dele”. O contraponto está nas críticas, tal como pretendia Sr. Leland, que oferecia resistência em um primeiro momento. Mas quem dita as regras é o Sr. Kane, que disciplina aqueles que o contrariam e faz com que prime o clamor pela cantora.

A próxima cena ilustra o tédio do ostensivo palácio. A jovem moça que vê sua juventude substituída por gigantescos quebra-cabeças, fadada ao ócio e a solidão de um palácio gelado. A preocupação com a opinião pública é uma constante na vida do protagonista. A decepção de perder um amor suscita opiniões negativas, e deixam nas entrelinhas uma preocupação que nada tinha a ver com o amor, mas com o simples fato de perder. Os antigos amigos de Kane apresentam um aspecto decadente, pessoas que eventualmente foram descartadas. Alexandra, por exemplo, perdeu todo o seu dinheiro e sucesso. O Sr. Leland estava internado.

A próxima cena retrata o momento sublime, em que o protagonista revela sua vulnerabilidade. No reflexo de seu rosto no espelho, nota-se que escorrem lágrimas em seus olhos, e sua boca pronuncia o enigma: “Rosebud”. Dentre os objetos e utensílios de seu palácio, em meio a estátuas e quebra-cabeças de seu excêntrico universo palaciano, o quebra-cabeças termina inconcluso para os jornalistas. Falta uma peça. Quiçá a crucial.

Mas Orson Wells o revela para o espectador em sua cena final: a palavra aparece inscrita em seu antigo trenó à revelia de um nostálgico clamor pelos tempos em que ainda era autêntico.
[1].

[1] “Eu sou um americano. Sempre fui um americano”

2 comentários:

Fanba Bara O disse...

Mas Marina, você contou o final do filme ...

Marina disse...

Grandessíssima surpresa! Pra 1941. É um clássico. Mas será que faria sentido que a resenha deixasse em aberto a chave apresentada por Wells? Pode ser...