No dia 12 de janeiro, um terremoto de proporções catastróficas atingiu o Haiti vitimando centenas de milhares de pessoas e provocando uma abissal destruição no país.. No entanto, se essa tragédia foi uma fatalidade ocasionada por razões naturais, os fatos que se seguem a ela não o são. E por isso entendemos que uma declaração de solidariedade ao povo haitiano, para além de apenas manifestar condolências por seu sofrimento, deve focalizar os fatos que envolvem essa tragédia ocorrida em um país economicamente devastado e que vive uma situação de convulsão política.
Nos últimos dias a mídia brasileira vem publicando uma enxurrada de reportagens sobre a tragédia no Haiti, que se tornou um tema central na maioria dos veículos. Além da manifestação de solidariedade às vítimas (sempre em tom de horror moralista) a maior parte dessas matérias prima por ressaltar a miserabilidade do Haiti, a condição de vida degradante de grande parte de seus habitantes e os problemas crônicos de saúde e educação do país. Do mesmo modo, apresenta os haitianos como um povo exótico e carente dos valores e preceitos da “civilização”. O que se pretende, nitidamente, é traçar uma caricatura do povo haitiano como “atrasado” e incapaz de gerir por si próprio os destinos de seu país, legitimando dessa forma a intervenção das tropas militares e a opressão imperialista sofrida pelo país mascaradas sob a forma de “missão de paz” e “ajuda humanitária”.
Somam-se a essas matérias declarações absurdas, nitidamente racistas que naturalizam e reproduzem a lógica de opressão, como a do pastor Pat Robertson, fanático religioso da extrema-direita dos EUA para quem a catástrofe do terremoto trata-se de uma “punição divina” aos haitianos que teriam feito um pacto com o demônio para se libertar da França. E, mais grave ainda, a declaração do Cônsul do Haiti no Brasil para quem “os africanos são amaldiçoados” e a tragédia no Haiti é interessante por dar visibilidade ao país.
A primeira coisa a se reparar é que a pobreza do Haiti não se deve à “incompetência dos haitianos” nem muito menos às “punições divinas”, mas sim ao processo de espoliação econômica sofrido pelo país ao longo de vários séculos; que é uma prova de que o capitalismo não tem nada a oferecer aos trabalhadores e ao povo pobre e oprimido exceto miséria e catástrofe. Historicamente o Haiti foi uma colônia francesa, então nomeada São Domingos, responsável por uma grande parcela da produção mundial de açúcar e de grande importância econômica para a metrópole, e na qual predominava o modelo escravista e a lógica de exploração.
Em 1791 o Haiti é palco de fervorosos acontecimentos políticos e assiste ao triunfo de uma rebelião escrava, dirigida por Toussaint Louverture, que extinguia a escravidão no país e tornava o país independente da França, o que sem dúvida representava um duro golpe para as nações escravocratas que passariam a viver com o temor de um acontecimento semelhante. Em função disso, o Haiti sofrerá inúmeras invasões e ocupações por diversos países europeus ao longo do século XIX, incluindo a própria França, cuja invasão militar resulta na imposição ao Haiti de uma dívida em troca da independência.
O Haiti também possui um amplo histórico de golpes militares, ocupações e intervenção política e econômica por parte dos EUA ao longo do século XX e também no início do século XXI. Para citarmos apenas dois exemplos, lembramos que as ditaduras genocidas de “Papa Doc” e “Baby Doc”, que somadas duraram 30 anos, se deram sob a tutela dos EUA, assim como o atual governo supostamente “democrático” de René Preval, que desde eleito vem cumprindo rigorosamente os planos traçado pelo FMI, ampliando a abertura econômica, privatizando empresas e avançando na retirada de direitos trabalhistas. Tudo para garantir que essa ex-colônia revoltosa permaneça em seu devido lugar, fornecendo gêneros agrícolas para exportação a baixo custo e mão-de-obra semi-escrava nas transnacionais de tecidos e outros bens de consumo.
Assim, quando Barack Obama, de forma cínica, convoca a “comunidade internacional” a “voltar seus olhos para o Haiti e ajudá-lo” o que está sendo colocado não é uma desinteressada “ajuda humanitária”, mas um plano político de ocupação da região caribenha, que ao mesmo tempo previne a migração de haitianos para a costa de Miami e mantém um considerável contingente militar em uma área muito próxima de Cuba. Não por acaso a suposta “ajuda” vem em forma de militarização e fortalecimento da espoliação e opressão imperialista: Obama acaba de assinalar o envio de mais dez mil soldados ao Haiti. Deve-se observar ainda que os dois órgãos da “missão humanitária” dos EUA são o seu Departamento de Defesa e a US Agency for International Development (USAID), o mesmo órgão usado para a “reconstrução” do Iraque, responsável pelas reformas educacionais do Brasil no período da Ditadura Militar e também atuante no Chile durante a ditadura de Pinochet.
Mais demonstrações de cinismo também são visíveis no Governo Lula. Desde 2004, quando as tropas da ONU ocuparam o Haiti, o Brasil, com o intuito de pleitear uma vaga no Conselho de Segurança da ONU, exerce um papel de liderança na ação de intervenção nomeada Minustah. Ainda que Lula diga que o propósito da intervenção do exército brasileiro é “respaldar um governo democrático”, tudo que a ocupação militar tem causado são assassinatos, repressão, estupros, massacres nos bairros pobres e violações diversas dos direitos humanos. Em 2008, a população haitiana se rebelou e saiu às ruas em protesto contra a ocupação de seu país. E o papel da “missão de paz” foi reprimir e assassinar os manifestantes em nome da “manutenção da democracia”. Quando se trata da democracia dos ricos, qualquer manifestação dos oprimidos é uma “ameaça à democracia”...
Da mesma forma, foram reprimidos pelas “tropas de paz” os estudantes haitianos que não se calaram diante da ocupação e das atrocidades praticadas em seu país, e se levantaram em 2008 e 2009 contra a presença criminosa da Minustah, contra o desmantelamento da educação e reivindicando ao lado dos trabalhadores o aumento do indecente salário mínimo. Ainda assim o cinismo do Governo Lula persiste, e agora ganha endosso de algumas vozes supostamente opositoras, como Marina Silva, que recentemente escreveu na Folha que deve-se reconhecer o esforço dos “heróicos soldados brasileiro na ‘missão de paz’”, embelezando a ocupação criminosa e as tropas assassinas.
E serão exatamente essas mesmas tropas interventoras e assassinas as responsáveis por controlar os recursos enviados em ajuda ao Haiti e “garantir” a reconstrução do país. Sob o pretexto da ajuda humanitária, há na verdade um recrudescimento da militarização no Haiti. É evidente que não há possibilidade alguma de reconstrução em um país ocupado militarmente. E por isso qualquer declaração sincera de solidariedade ao povo haitiano deve incluir a exigência de retirada das tropas do Haiti. Além disso, é fundamental que os recursos enviados em ajuda ao Haiti sejam controlados e geridos pelo próprio povo haitiano, através dos sindicatos, das organizações populares e dos trabalhadores. Pois, obviamente, não é possível confiar nem nas tropas assassinas e nem nos órgãos do imperialismo.
Nós, do Movimento A Plenos Pulmões, sempre nos solidarizamos com os oprimidos de todo o mundo, mas não de forma hipócrita como a grande mídia e os políticos burgueses; nos solidarizamos de forma ativa, nos colocando lado a lado, ombro a ombro com os que sofre com a opressão. E por isso entendemos que é parte conseqüente e fundamental da solidariedade com o povo haitiano colocar em pé uma grande campanha pelo fim da ocupação militar do Haiti e a retirada imediata das tropas interventoras. É assim, lutando ativamente contra a opressão do povo haitiano que pretendemos expressar a nossa solidariedade, de modo sincero e coerente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário